o recreio


na minha alma há um balouço
que está sempre a balouçar
—balouço à beira de um poço,
bem difícil de montar...

— e um menino de bibe
sobre ele sempre a brincar...

se a corda se parte um dia
(e já vai estando esgarçada),
era uma vez a folia;
morre a criança afogada...

— cá por mim não mudo a corda
seria grande estopada...

se o indez morre, deixá-lo...
mais vale morrer de bibe
que de casaca... deixá-lo
balouçar-se enquanto vive...

— mudar a corda era fácil...
tal ideia nunca tive...

mário de sá-carneiro

...



se pena por amar-vos se merece,
quem dela livre está? ou quem isento?
que alma, que razão, que entendimento
em ver-vos se não rende e obedece?

que mor glória na vida se oferece
que ocupar-se em vós o pensamento?
toda a pena cruel, todo o tormento
em ver-vos se não sente, mas esquece.

mas se merece pena quem amando
contínuo vos está, se vos ofende,
o mundo matareis, que todo é vosso.

em mim, senhora, podeis ir começando,
que claro se conhece e bem se entende
amar-vos quanto devo e quanto posso.

camões

bocage...



quantas vezes, amor, me tens ferido?
quantas vezes, razão, me tens curado?
quão fácil de um estado a outro estado
o mortal sem querer é conduzido!

tal, que em grau venerando, alto e luzido,
como que até regia a mão do fado,
onde o sol, bem de todos, lhe é vedado,
depois com ferros vis se vê cingido:

para que o nosso orgulho as asas corte,
que variedade inclui esta medida,
este intervalo da existência à morte!

travam-se gosto, e dor; sossego e lida;
é lei da natureza, é lei da sorte,
que seja o mal e o bem matiz da vida.

...



nossos corpos agora estão feridos
por naufrágios ao largo dos açores
e por luas que sangram nos sentidos
quando um amor se vai e morrem flores.

desfazem-se e renascem corpo a corpo
e há sempre um por fazer no já desfeito
há um corpo que salva a nado o outro
quando às vezes o mar entra no leito.

nossos corpos cansados não se cansam
e não perdem mesmo se perdidos
e ainda que tão perto não se alcançam.

por isso por si mesmo feridos
e em suas próprias feridas é que dançam
os deuses que se escondem nos sentidos.

manuel alegre

funeral blues




stop all the clocks, cut off the telephone,
prevent the dog from barking with a juicy bone,
silence the pianos and with muffled drum
bring out the coffin, let the mourners come.
let aeroplanes circle moaning overhead
scribbling on the sky the message he is dead,
put crêpe bows round the white necks of the public doves,
let the traffic policemen wear black cotton gloves.

he was my north, my south, my east and west,
my working week and my sunday rest,
my noon, my midnight, my talk, my song;
i thought that love would last for ever: i was wrong.

the stars are not wanted now: put out every one;
pack up the moon and dismantle the sun;
pour away the ocean and sweep up the wood.
for nothing now can ever come to any good.


w. h. auden

entre o sono e sonho



entre o sono e sonho,
entre mim e o que em mim
é o quem eu me suponho
corre um rio sem fim.
passou por outras margens,
diversas mais além,
naquelas várias viagens
que todo o rio tem.

chegou onde hoje habito
a casa que hoje sou.
passa, se eu me medito;
se desperto, passou.

e quem me sinto e morre
no que me liga a mim
dorme onde o rio corre -
esse rio sem fim.

fernando pessoa

um voo



antes o vôo da ave, que passa e não deixa rasto,
que a passagem do animal, que fica lembrada no chão.
a ave passa e esquece, e assim deve ser.
o animal, onde já não está e por isso de nada serve,
mostra que já esteve, o que não serve para nada
a recordação é uma traição à natureza,
porque a natureza de ontem não é natureza.
o que foi não é nada, e lembrar é não ver.

passa, ave, passa, e ensina-me a passar!

fernando pessoa

uma história (podia ser minha...)



conta a lenda que dormia
uma princesa encantada
a quem só despertaria
um Infante, que viria
de além do muro da estrada.

ele tinha que, tentado,
vencer o mal e o bem,
antes que, já libertado,
deixasse o caminho errado
por o que à princesa vem.

a princesa adormecida,
se espera, dormindo espera.
sonha em morte a sua vida,
e orna-lhe a fronte esquecida,
verde, uma grinalda de hera.

longe o infante, esforçado,
sem saber que intuito tem,
rompe o caminho fadado.
ele dela é ignorado.
ela para ele é ninguém.

mas cada um cumpre o destino -
ela dormindo encantada,
ele buscando-a sem tino
pelo processo divino
que faz existir a estrada.

e, se bem que seja obscuro
tudo pela estrada fora,
e falso, ele vem seguro,
e, vencendo estrada e muro,
chega onde em sono ela mora.

e, inda tonto do que houvera,
à cabeça, em maresia,
ergue a mão, e encontra hera,
e vê que ele mesmo era
a princesa que dormia.

fernando pessoa - eros e psique

camões



quem vê, senhora, claro e manifesto
o lindo ser de vossos olhos belos,
se não perder de vista só em vê-los,
já não paga o que deve a vosso gesto.

este me parecia preço honesto;
mas eu, por de vantagem merecê-los,
dei mais a vida e alma por querê-los,
donde já não me fica mais de resto.

assim que a vida e alma e esperança,
e tudo quanto tenho, tudo é vosso,
e o proveito disso eu só o levo.

porque é tamanha bem-aventurança
o dar-vos quanto tenho e quanto posso,
que, quanto mais vos pago, mais vos devo.

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